1. NARRADOR
Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector. Oito dos treze contos [Devaneio e embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, Mistério em São Cristóvão e O búfalo] tratam da condição feminina no contexto familiar.
Nos quatro contos restantes [Uma galinha, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna e O crime do professor de matemática], a escrita continua presa ao universo familiar, privilegiando outros membros da família.
Todos esses contos são narrados em terceira pessoa, exceto O jantar que é narrado em primeira pessoa.
Nos doze contos em terceira pessoa, o foco narrativo caracteriza-se pela onisciência do narrador, que desvenda a interioridade dos personagens através de um movimento ora de cumplicidade, ora de distanciamento em relação a eles.
A cumplicidade, ou adesão, ocorre por intermédio do discurso indireto livre, da apresentação do fluxo de consciência dos personagens femininos, como veremos no exemplo abaixo.
Ai, palavras, palavras, objetos de quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e marcantes, que quem souber ler lerá. Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia de fazer. Ai, é uma tal coisa que se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertia tanto esta noite! E dizer que fora tão boa! Gritou-lhe seu o restaurante, ela sentada fina à mesa.
Mesa! Gritou-lhe o mundo. Mas ela nem se quer a responder-lhe, a alçar os ombros como um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea. [Devaneio e embriaguez de uma rapariga].
Observe que o narrador contrapõe a terceira [...dizer que se divertira tanto esta noite] à primeira pessoa [Ai, é uma coisa que se me dá que nem bem sei dizer], aproximando-se da personagem sem explicar-lhe os sentimentos, mas expondo-os tal como surgem, confusos, repetitivos, calados...
Este procedimento distingue os textos de Clarice dos romances de análise introspectiva, já que nos de Clarice o olhar de míope se cola aos personagens, desvenda-os com a minúcia, com o apego ao detalhe sensível, que segundo Gilda de Mello e Souza caracterizam o universo feminino, um universo de lembranças ou de espera, como mostra o exemplo transcrito, revelado com luminosa nitidez de contornos.
O feminino é assim femininamente representado, Por empatia e não por esforço racionalizado, embora, nos momentos de distanciamento, o narrador traduza o silêncio deste universo, e também as suas atribuições socialmente definidas.
Ai, que cousa que me dá! penso desesperada. Teria comido demais? ai, que cousa que me dá, minha santa mãe!
Era a tristeza.
Acordo com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito! dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste! censurou-se curiosa e satisfeita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol. [Devaneio e embriagues de uma rapariga]
No segundo parágrafo, o narrador, com a frase: Era a tristeza, verbaliza a indizível sensação da personagem expressa no primeiro parágrafo. No terceiro parágrafo informa a personagem das batatas por descascar, das crianças por cuidar, da roupa por lavar e das peúgas [meias] por cerzir.
As compras, o peixe, o dia atrasado, quer dizer, as obrigações domésticas que precisam ser cumpridas, constituem os elementos que reprimem a embriaguez, fazendo com que a personagem retorne a rotina... Assim, mesmo indo além da percepção confusa da personagem, mesmo traduzindo-a, o narrador onisciente não se afasta do imaginário da personagem mais que suficiente para denunciar a estreiteza de seu universo doméstico, denunciar uma prisão incompatível com a auto descoberta, com o processo de reconhecimento da individualidade, que ocorre ao longo dos enredos em forma de expressão de sentimentos primários, em forma de manifestação de um interesse apaixonado pela existência que momentaneamente transgride as limitações do papel social da mulher, sem transforma-lo, entretanto. É o que veremos, estudando os enredos desta obra.
2. ENREDOS
Vamos organizar o nosso trabalho, aproximando os contos pelo modo como abordam a temática dos laços de família, passando em seguida à apresentação sumária dos enredos, comentando as afinidades entre eles.
Devaneio e embriagues de uma rapariga
Uma mulher portuguesa, com a ausência circunstancial dos filhos, passa a devanear e a sonhar - Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar.
Neste clima chega o marido, a quem não dá importância quando este suspeita de que ela esteja doente. e continua o devaneio, lembrando-se de um jantar a que fora com o marido e o patrão dele. Neste janta, a duplicidade de sua vida com a esposa e com a mulher é revelada no êxtase com que se percebe cortejada pelo patrão do marido, na inveja que lhe provoca uma moça loira de peitos chatos, cintura fina e chapéu - uma mulher que lhe parecia ainda não ter assumido o papel doméstico.
Com a proximidade do retorno dos filhos, a mulher portuguesa [neste conto o narrador adere à personagem inclusive utilizando o Português de Portugal] volta ao devaneio e, para compensa-lo, resolve fazer uma grande faxina na casa.
3. TEMPO / ESPAÇO
Em termos de tempo e espaço, repete-se o comentário que fizemos sobre o enredo e os personagens. A divisão entre a interioridade e exterioridade, entre a infinitude do universo subjetivo e a limitação do universo exterior, constitui o contraponto em que trabalha Clarice, privilegiando o espaço externo que surge repentinamente, a qualquer pretexto, para que o personagem mergulhe no verdadeiro espaço destacado na obra: o si mesmo, incompreendido e subterrâneo.
Outra divisão que nos interessa para compreendermos a obra é aquela que se dá entre o tempo cronológico e o tempo psicológico. Cronologicamente, a mesmice da rotina impera nos contos.
Entretanto, o fragmento de tempo em que esta rotina é suspensa para que aconteça a explosão dos sentimentos, das sensações e das emoções dos personagens transforma-se num infinito de duração não mensurável em quantidade de tempo, que é mínima, mas em intensidade, como os domingos, as manhãs suspensos no ar...Ou como a primavera no conto O Búfalo, representando a dificuldade sentida pela mulher de odiar o homem que a rejeitara. Mas era primavera, a frase que inicia o conto, começa com uma conjunção adversativa [mas] cujo sentido só compreendemos depois de ler o texto: a primavera sugerindo o amor e a mulher suplicando e precisando do ódio.
4. LINGUAGEM
O mundo de Clarice é vivo e sensual. Erotizado, ele pulsa de corpo inteiro. Mundo carregado de cheiros, frutos podre e adocicados, carne crua e sangrenta, cheiro de cal, de maresia, de guardados, de estrebaria, de vacas, de leite e sangue. Carregado de formas gelatinosas e macilentas, de lama, de pus. De musicalidade que ecoa e vibra suas dissonância ao som agudo da flauta e do violino plangente. De telas e mais telas que pretendem alcançar o branco sobre o branco.
A convocação de todos esses elementos e outros mais são recursos tidos como necessários para captar a vida, a existência. Não a existência abstrata, exemplar, mas aquela que se entranha na banalidade do cotidiano. E isso Clarice consegue captar, de modo magistral, nos contos...
Quem nos conta todas essas histórias é Clarice Lispector que se conta através delas...
O fracasso é também o estigma que a escritora carrega. Entre a realidade, sua matéria-prima, e a linguagem - o modo como vai buscá-la e não se encontra - o seu esforço humano e apaixonado é buscar e voltar com as mãos vazias. Com o indizível. 'O indizível só me poderá ser dado com o fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela conseguiu.'
Enquanto nomeia e designa, a palavra faz surgir, à sua sombra, a multiplicidade do que não tem nome. Ela trai no que alcança dizer e é fiel quando silencia. Para contar não os fatos mas seus ecos e 'sussurros' não os personagens, mas suas vibrações e intimidades, não um caminho mas instantes privilegiados e fugidos, é preciso lapidar as estrelinhas, golpear a linha e aumentar o cerco do silêncio que rodeia a palavra.
Dilacerada, a linguagem mapeia o dilaceramento dos personagens, sua dispersão.
Dispersa, mutilada, a linguagem espelha o vazio do sujeito à procura da própria imagem de totalidade perdida no mundo em que vive.
Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o texto de Clarice.
sábado, 8 de junho de 2013
LAÇOS DE FAMÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR

Incluï-se entre os melhores livros de contos de nossa Literatura. São 13 contos centrados, tematicamente, no processo de aprisionamento dos indivíduos através dos "laços de família", de sua prisão doméstica, de seu cotidiano.
As formas de vida convencionais e estereotipadas não se repetindo de geração para geração , submetendo-se as consciências e as vontades.A dissecação da classe média carioca resulta numa visão, desencantada e descrente dos liames familiares, dos "laços" de convenção e interesse que minam a precária união familiar.
As formas de vida convencionais e estereotipadas não se repetindo de geração para geração , submetendo-se as consciências e as vontades.A dissecação da classe média carioca resulta numa visão, desencantada e descrente dos liames familiares, dos "laços" de convenção e interesse que minam a precária união familiar.
Os três mais conhecidos são Amor, Uma galinha, e Feliz Aniversário.
"Devaneio e embriaguez duma rapariga'
Uma típica senhora portuguesa casada, certo dia ao encontrar-se defronte ao espelho a mirar-se, estando só em casa ( os filhos e o marido estavam fora ) começou a devanear. Tanto que ficou o tempo inteiro no quarto sob a cama_ o que fez o marido pensar que esta estava doente.
Tão logo os filhos voltam ao lar, a vida retoma o seu norte e nossa personagem volta ao seu ritmo cotidiano, apenas desmanchado por um encontro de negócios entre seu marido e respectivo chefe.
Embriaga-se e desenvolve muita prosa com o chefe do marido_ em verdade enciumava a beleza da vestimenta de outra mulher no recinto e isto feriu-lhe a vaidade.
Ao chegar em casa repensa sua própria sensualidade e o desejo que podia despertar nos homens.
"Amor"
Ana_ urna mulher casada, pacata e mãe de dois filhos, tinha uma vida doméstica muito calma, donde cuidava dos seus com o esmero e amor típicos de uma pessoa fraterna e sensível. Aliás Ana, em hebraico significa "pessoa benéfica, piedosa".
Certo dia ao ir às compras encontrou-se com um cego que muito a impressionou; com a freada brusca do bonde onde se encontrava_ os ovos que carregava acabaram quebrando-se_ pronto! A sua paz tão duramente conquistada desapareceu.
Transtornada acabou por descer no Jardim Botânico que por sua beleza fê-la temer o próprio inferno. Aqui podemos fazer um paralelo entre a beleza que salta aos olhos e o cego que está privado disto_ este último vive o próprio inferno em terra. Esta então é a explicação de tanto que impressionara a personagem.
Ao voltar para casa sentia que alguma coisa havia mudado dentro de si, abraçou o filho tão fortemente que o assustou e foi ajudar o marido quando este derrubou o café. Carinhosamente este pegou-lhe a mão e levou-a para o quarto para dormirem.
"Uma galinha"
Uma galinha de domingo, pronta para o abate. Contudo quando apanhada pelo pai da menina que é a narradora da estória, a galinha acaba pondo um ovo_ imediatamente a menina avisa os demais familiares do fato e alerta-os para a nova condição de "mãe" da galinha.
O pai de família, sentindo-se culpado por tê-la feito correr para o abate, acaba por nomear a ave como de estimação sob pena de que se o animal fosse sacrificado nunca mais voltaria a alimentar-se da galinha.
Contudo, houve um dia em que "mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."
"A imitação da rosa"
Laura, casada e sem filhos, preparava-se para um jantar na casa de amigos. Era a primeira vez que ela faria isto desde que voltara do hospital, onde fora internada. provavelmente por causa de um surto. Ela pretendia estar pronta, de banho tomado, em seu vestido marrom, a casa limpa e a empregada despachada, quando seu marido, Armando, chegasse. Assim teria tempo livre para ficar à disposição dele. e ajudá-lo a arrumar-se.
Laura parecia perseguir a perfeição a todo custo, vigiava-se para ser um esposa modelo, submissa e obediente, mediana até na cor dos cabelos, nem loura, nem morena: de modestos cabelos marrons Ela procura parecer normal, premedita todos os seus gostos. Não quer que os outros se preocupem com ela. Pensa o quanto seria bom ver o marido enfim relaxado, conversando como amigo, no jantar, sem lembrar-se de que ela existe.
Exausta e feliz, pois acabara de passar em ferro todas as camisas de Armando. Laura sentou-se na poltrona da sala e cochilou um breve instante.
Quando acordou, teve a sensação de que a sala estava renovada.
Admirou intensamente as rosas que comprara pela manhã, na feira. Eram perfeitas. Resolveu então dá-las á amiga que iria, à noite visitar. Estava decidido, mandaria as flores pela empregada. Mas, logo depois, Laura hesitava. Por que as rosas, tão bonitas, não podiam ser dela mesma? Por que a beleza e exuberância das rosas a ameaçava? Acabou cedendo-as, a empregada levou as flores, e ela não conseguiu voltar atrás.
É provável que a perfeição que Laura vira nas rosas tivesse lhe provocado o impulso de romper novamente com seu lado submisso e servil para se tornar incansável. super-.humana, independente. tranquila, perfeita e serena.
Quando o marido chegou do trabalho, Laura ainda estava sentada na poltrona, e nada tinha feito do que planejara Dirigiu-se a ele: "Voltou. Armando. Voltou. (..) Não pude impedir. disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava ria sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir. repetiu, (...) Foi por causa das rosas, disse cor,, modéstia(...) Ele a olhou envelhecido e curioso.
Ela estava sentada com seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável.
sexta-feira, 7 de junho de 2013
A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
Em seu último romance, Clarice Lispector criou um narrador fictício, Rodrigo S.M, que relata a vida da jovem nordestina Macabéa, ao mesmo tempo em que reflete sobre os sonhos, as manias e os conflitos internos da garota.
Resumo
Enredo 1
O narrador conta a história de Macabéa, jovem alagoana de 19 anos que vive no Rio de Janeiro. Órfã, mal se lembrava dos pais, que morreram quando ela era ainda criança. Foi criada por uma tia muito religiosa e moralista, cheia de superstições e tabus, os quais ela passou para a sobrinha.
Essa tia também tinha certo prazer mórbido em castigar Macabéa com cascudos na cabeça, muitas vezes sem motivo, além de privá-la de sua única paixão: a goiabada com queijo na sobremesa. Assim, depois de uma infância miserável, sem conforto nem amor, sem ter tido amigos nem animais de estimação, Macabéa vai para a cidade grande com a tia.
Apesar de ter estudado pouco e não saber escrever direito, Macabéa faz um curso de datilografia e consegue um emprego, no qual recebe menos que o salário mínimo. Após a morte da tia, deixa de ir à igreja e passa a repartir um quarto de pensão com quatro balconistas de uma loja popular.
Macabéa cheirava mal, pois raramente tomava banho. À noite, não dormia direito por causa da tosse persistente, da azia — em virtude do café frio que tomava antes de se deitar — e da fome, que ela disfarçava comendo pedacinhos de papel.
A moça tinha hábitos e manias que aliviavam um pouco a solidão e o vazio de sua existência. Entretinha-se ouvindo a Rádio Relógio num aparelho emprestado de uma das colegas. Essa emissora informava a hora certa, transmitia cultura inútil e propaganda, sem nenhuma música. A garota colecionava também anúncios de jornais e revistas, que colava num álbum. Certa vez, cobiçou um creme cosmético, que preferia comer em vez de passar na pele.
Era muito magra e pálida, pois não se alimentava direito. Basicamente vivia de cachorro-quente com Coca-Cola, que comia na hora do almoço, em pé, no balcão de uma lanchonete ou no escritório em que trabalhava. Não sabia o que era uma refeição quente. Seus luxos consistiam em pintar de vermelho as unhas, que roía depois, comprar uma rosa e, quando recebia o salário, ir ao cinema, o que a fazia desejar ser estrela de cinema, como Marilyn Monroe, seu grande sonho.
Certo dia, o chefe de Macabéa, Raimundo, cansado do péssimo trabalho que ela executava, com textos datilografados cheios de erros de ortografia e marcas de gordura, resolve despedi-la. A reação da garota, de se desculpar pelo aborrecimento causado, acaba desarmando Raimundo, que decide mantê-la por mais um tempo.
Num dia 7 de maio, Macabéa mente dizendo que arrancaria um dente e falta ao trabalho para poder aproveitar a liberdade da solidão e fazer algo diferente. Assim que as colegas saem para trabalhar, ela coloca uma música alta, dança, toma café solúvel e até mesmo se dá ao luxo de se entediar. É nesse dia que conhece Olímpico de Jesus, único namorado que teve.
Não foi um namoro convencional. Olímpico também havia migrado do Nordeste, onde matara um homem, fugindo para o Rio de Janeiro. Conseguira emprego numa metalúrgica, o que dá delírios de grandeza em Macabéa. Afinal, ambos tinham profissão: ela era datilógrafa e ele, metalúrgico.
Mau-caráter e ambicioso, Olímpico morava de favor no trabalho, roubava os colegas e almejava um dia ser deputado. O passeio dos namorados era sempre seguido de chuvas e de programas gratuitos, como sentar-se em bancos de praça para conversar. Nessas ocasiões, Olímpico se irritava com as perguntas que Macabéa fazia, o que a levava constantemente a se desculpar, pois não queria perdê-lo, apesar de seus maus-tratos.
Certo dia, admitindo que ela nunca lhe dava despesa, Olímpico decide pagar um cafezinho para Macabéa no bar da esquina. Avisa, porém, que se o café com leite fosse mais caro, ela pagaria a diferença. Macabéa, emocionada com a "bondade" do namorado, acaba enchendo o copo de açúcar para aproveitar, ficando enjoada depois. Em um passeio ao zoológico, Macabéa fica com tanto medo do rinoceronte que urina na roupa e tenta disfarçar para não desagradar ao namorado. Um dia, vendo que só o chefe e sua colega de escritório, Glória, recebiam telefonemas, Macabéa dá uma ficha telefônica para que Olímpico ligue para ela. Ele se recusa, dizendo que não queria ouvir as "bobagens" dela.
Até que, após conhecer Glória, Olímpico decide romper com Macabéa para ficar com a sua amiga. O rapaz considera a troca um progresso, já que elas eram opostas: Glória era loira (oxigenada), cheia de corpo, morava numa casa confortável, tinha três refeições por dia e, o mais importante, seu pai era açougueiro, profissão ambicionada por Olímpico.
Após esse episódio, Macabéa vai ao médico e descobre que tem tuberculose, mas não entende muito bem a gravidade da doença. Sente-se bem só por ter ido ao consultório e não acha necessário comprar o medicamento receitado. Com dor na consciência por ter roubado o namorado de Macabéa, Glória a convida para lanchar em sua casa. Macabéa, mais uma vez, aproveita a oportunidade e come demais. Apesar de passar mal, não vomita para não desperdiçar o luxo do chocolate, mas sente remorsos por ter roubado uma rosquinha.
Finalmente, aconselhada por Glória, Macabéa vai até uma cartomante para saber de sua sorte. Lá, é recebida pela própria, Madama Carlota, que impressiona a pobre moça pelo "requinte" de sua residência, repleta de plástico, e pela amabilidade afetada com que a trata. Após Madama Carlota contar sobre sua vida como prostituta e cafetina, lê as cartas para Macabéa, que, emocionada, pela primeira vez vislumbra um futuro e se permite ter esperança. Afinal, iria se casar com um estrangeiro rico, que daria todo o amor de que ela precisava.
Inebriada com as previsões da cartomante, Macabéa atravessa a rua sem olhar e é atropelada por uma Mercedes-Benz. Caída na calçada e sangrando, seu fim é testemunhado por inúmeros espectadores que se aglomeram em torno dela, sem que nenhum ofereça socorro. Por fim, a garota tosse sangue e morre. Havia chegado a hora da estrela.
Enredo 2
Começa quando o narrador, andando pela rua, capta o olhar de desespero de uma jovem nordestina no meio da multidão. A partir daí, nasce Macabéa, que representa a miséria inerente ao autor e a todas as pessoas. Em uma relação de amor e ódio, Rodrigo S.M. narra a vida dessa moça como tentativa de se livrar da sensação de mal-estar que ela representa e que o contagiava, ao mesmo tempo em que se apieda e se revolta, inclusive se sentindo culpado por viver num padrão mais elevado que a maioria da população marginalizada.
Dessa forma, intima o leitor a também se colocar no lugar do outro para experimentar essa miséria e perceber que, no fundo, ela faz parte de todos nós. Por isso, não basta denunciar as mazelas sociais, como a fase anterior do modernismo pregava, mas induzir o leitor a uma epifania, uma revelação, ainda que despertada pela náusea, como nesse caso.
Enredo 3
Nessa parte, Rodrigo S.M. discute a limitação da literatura diante da busca existencial. Também ironicamente condena os autores de estilo pretensamente original, que abusam de modismos, de adornos que descaracterizam o poder das palavras, bem como a obsessão pelo rigor formal, pela ortografia impecável.
Assim, há na obra diversos recursos metalinguísticos. Essas três narrativas se interligam, não sendo possível separá-las, pois o livro nem mesmo tem divisão por capítulos.
Lista de personagens
Rodrigo S.M.: é o narrador da história e pode ser entendido como uma representação da própria escritora. Ele faz ao longo do livro diversas reflexões sobre o ato de escrever. Sua principal preocupação é em mergulhar na profundidade do ser humano para entender sua natureza.
Macabéa: personagem principal da obra, é uma moça nordestina (alagoana) de 19 anos, pobre e desleixada. Não tem família e vive com um subemprego no Rio de Janeiro. Sua ignorância é tamanha que não reconhece nem sua própria infelicidade.
Olímpico de Jesus: é o primeiro e único namorado de Macabéa. Também nordestino, mas da Paraíba, não tem escrúpulos e é ambicioso.
Glória: filha do açougueiro e colega de trabalho de Macabéa. Apesar de não ser bonita, tinha certa sensualidade. Por conta disso, Olímpico deixa Macabéa para ficar com ela.
Madame Carlota: a cartomante.
ANÁLISE DA OBRA VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS
"Vidas Secas", romance publicado em 1938, retrata a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca. A obra pertence à segunda fase modernista, conhecida como regionalista, e é qualificada como uma das mais bem-sucedidas criações da época.
O estilo seco de Graciliano Ramos, que se expressa principalmente por meio do uso econômico dos adjetivos, parece transmitir a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as pessoas que ali estão.
O estilo seco de Graciliano Ramos, que se expressa principalmente por meio do uso econômico dos adjetivos, parece transmitir a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as pessoas que ali estão.
A estética da seca
"Vidas Secas" é um dos maiores expoentes da segunda fase modernista, a do regionalismo. O diferencial desse livro para os demais da época é o apuro técnico do autor. Graciliano Ramos, ao explorar a temática regionalista, utiliza vários expedientes formais – discurso indireto livre, narrativa não-linear, nomes dos personagens – que confirmam literariamente a denúncia das mazelas sociais.
O livro consegue desde o título mostrar a desumanização que a seca promove nos personagens, cuja expressão verbal é tão estéril quanto o solo castigado da região. A miséria causada pela seca, como elemento natural, soma-se à miséria imposta pela influência social, representada pela exploração dos ricos proprietários da região.
Os retirantes, como o próprio nome indica, estão alijados da possibilidade de continuar a viver no espaço que ocupavam. São, portanto, obrigados a retirar-se para outros lugares. Uma das implicações dessa vida nômade dos sertanejos é a fragmentação temporal e espacial.
Graciliano Ramos conseguiu captar essa fragmentação na estrutura de Vidas Secas ao utilizar um método de composição que rompia com a linearidade temporal, costumeira nos romances do século XIX.
A proposital falta de linearidade, ou seja, de capítulos que se ligam temporalmente, por relações de causa e de consequência, dá aos 13 capítulos de Vidas Secas uma autonomia que permite, até mesmo, a leitura de cada um de forma independente.
Narrador
A escolha do foco narrativo em terceira pessoa é emblemática, uma vez que esse é o único livro em que Graciliano Ramos utilizou tal recurso. Trata-se, na verdade, de uma necessidade da narrativa, para que fosse mantida a verossimilhança da obra. Por causa da paupérrima articulação verbal dos personagens, reflexo das adversidades naturais e sociais que os afligem, nenhum parece capacitado a assumir o posto de narrador.
O autor utilizou também o discurso indireto livre, forma híbrida em que as falas dos personagens se mesclam ao discurso do narrador em terceira pessoa. Essa foi a solução para que a voz dos marginalizados pudesse participar da narração sem que tivessem de arcar com a responsabilidade de conduzir de forma integral a narrativa.
Espaço
A narrativa é ambientada no sertão, região marcada pelas chuvas escassas e irregulares. Essa falta de chuva – somada a uma política de descaso do governo com os investimentos sociais – transforma a paisagem em ambiente inóspito e hostil.
Inverno, na região, é o nome dado à época de chuvas, em que a esperança sertaneja floresce. O sonho de uma existência menos árida e miserável esboça-se no horizonte e dura até as chuvas cessarem e a seca retornar implacável. No romance, essa esperança aparece no capítulo “Inverno”, em que Fabiano alimenta a expectativa de uma vida melhor, mais digna.
O retorno à visão marcada pela falta de perspectivas recomeça com o fim das chuvas, com o fim da esperança. Na obra, pode-se apontar, também, para dois recortes espaciais: o ambiente rural e o urbano. A relevância desse recorte se deve às sensações de adequação ou inadequação dos personagens em um ou outro espaço.
Fabiano consegue, apesar da miséria presente, dominar o ambiente rural. Incapaz de se comunicar, o personagem, desempenhando a solitária função de vaqueiro, não sente tanto as consequências de seu laconismo. Além disso, conhece as técnicas de sua profissão, o que lhe dá uma sensação de utilidade e permite que goze até de certa dignidade. A passagem em que seu filho o admira ao vê-lo trabalhando deixa claro isso. Na cidade, porém, Fabiano vivencia, a cada nova experiência, o sentimento de inadequação. Os capítulos “Festa” e “Cadeia” ilustram bem essa sensação.
Tempo
Além da falta de linearidade do tempo, em "Vidas Secas" há nítida valorização do tempo psicológico, em detrimento do cronológico. Essa opção do narrador de ocultar os marcadores temporais tem como principal consequência o distanciamento dos personagens da ordenação civilizada do tempo.
Dessa forma, nota-se que a ausência de uma marcação cronológica temporal serve, enquanto elemento estrutural, como mais uma forma de evidenciar a exclusão dos personagens. Por outro lado, a valorização do tempo psicológico na narrativa faz com que as angústias dos personagens fiquem mais próximas do leitor, que as percebe com muito mais intensidade.
"Vidas Secas" é um dos maiores expoentes da segunda fase modernista, a do regionalismo. O diferencial desse livro para os demais da época é o apuro técnico do autor. Graciliano Ramos, ao explorar a temática regionalista, utiliza vários expedientes formais – discurso indireto livre, narrativa não-linear, nomes dos personagens – que confirmam literariamente a denúncia das mazelas sociais.
O livro consegue desde o título mostrar a desumanização que a seca promove nos personagens, cuja expressão verbal é tão estéril quanto o solo castigado da região. A miséria causada pela seca, como elemento natural, soma-se à miséria imposta pela influência social, representada pela exploração dos ricos proprietários da região.
Os retirantes, como o próprio nome indica, estão alijados da possibilidade de continuar a viver no espaço que ocupavam. São, portanto, obrigados a retirar-se para outros lugares. Uma das implicações dessa vida nômade dos sertanejos é a fragmentação temporal e espacial.
Graciliano Ramos conseguiu captar essa fragmentação na estrutura de Vidas Secas ao utilizar um método de composição que rompia com a linearidade temporal, costumeira nos romances do século XIX.
A proposital falta de linearidade, ou seja, de capítulos que se ligam temporalmente, por relações de causa e de consequência, dá aos 13 capítulos de Vidas Secas uma autonomia que permite, até mesmo, a leitura de cada um de forma independente.
Narrador
A escolha do foco narrativo em terceira pessoa é emblemática, uma vez que esse é o único livro em que Graciliano Ramos utilizou tal recurso. Trata-se, na verdade, de uma necessidade da narrativa, para que fosse mantida a verossimilhança da obra. Por causa da paupérrima articulação verbal dos personagens, reflexo das adversidades naturais e sociais que os afligem, nenhum parece capacitado a assumir o posto de narrador.
O autor utilizou também o discurso indireto livre, forma híbrida em que as falas dos personagens se mesclam ao discurso do narrador em terceira pessoa. Essa foi a solução para que a voz dos marginalizados pudesse participar da narração sem que tivessem de arcar com a responsabilidade de conduzir de forma integral a narrativa.
Espaço
A narrativa é ambientada no sertão, região marcada pelas chuvas escassas e irregulares. Essa falta de chuva – somada a uma política de descaso do governo com os investimentos sociais – transforma a paisagem em ambiente inóspito e hostil.
Inverno, na região, é o nome dado à época de chuvas, em que a esperança sertaneja floresce. O sonho de uma existência menos árida e miserável esboça-se no horizonte e dura até as chuvas cessarem e a seca retornar implacável. No romance, essa esperança aparece no capítulo “Inverno”, em que Fabiano alimenta a expectativa de uma vida melhor, mais digna.
O retorno à visão marcada pela falta de perspectivas recomeça com o fim das chuvas, com o fim da esperança. Na obra, pode-se apontar, também, para dois recortes espaciais: o ambiente rural e o urbano. A relevância desse recorte se deve às sensações de adequação ou inadequação dos personagens em um ou outro espaço.
Fabiano consegue, apesar da miséria presente, dominar o ambiente rural. Incapaz de se comunicar, o personagem, desempenhando a solitária função de vaqueiro, não sente tanto as consequências de seu laconismo. Além disso, conhece as técnicas de sua profissão, o que lhe dá uma sensação de utilidade e permite que goze até de certa dignidade. A passagem em que seu filho o admira ao vê-lo trabalhando deixa claro isso. Na cidade, porém, Fabiano vivencia, a cada nova experiência, o sentimento de inadequação. Os capítulos “Festa” e “Cadeia” ilustram bem essa sensação.
Tempo
Além da falta de linearidade do tempo, em "Vidas Secas" há nítida valorização do tempo psicológico, em detrimento do cronológico. Essa opção do narrador de ocultar os marcadores temporais tem como principal consequência o distanciamento dos personagens da ordenação civilizada do tempo.
Dessa forma, nota-se que a ausência de uma marcação cronológica temporal serve, enquanto elemento estrutural, como mais uma forma de evidenciar a exclusão dos personagens. Por outro lado, a valorização do tempo psicológico na narrativa faz com que as angústias dos personagens fiquem mais próximas do leitor, que as percebe com muito mais intensidade.
VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS - RESUMO DA OBRA
RESUMO DA OBRA
Mudança
Em meio à paisagem hostil do sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa peregrinação silenciosa _ _ . O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim, deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar. Compadecido da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta _ .
A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco _ _ .
Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos filhos.
A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem - sempre um sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos _ .
Fabiano
Em vão Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora _ _ . Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho _ .
A uma pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas? Conversaria com Sinha Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, não acabara como todo mundo? As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano.
Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou em Sinha Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho _ ? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado.
Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinha Vitória sobre a educação dos pequenos.
Cadeia
Fabiano vai à feira comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar Sinha Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.
O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.
No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência _ . Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na família. Se não fosse Sinha Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar _ .
Sinha Vitória
Naquele dia, Sinha Vitória amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais.
Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinha Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a _ .
Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe a lembrança do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau _ . Pensou no papagaio e sentiu pena dele _ .
Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinha Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe _ . As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano queria uma cama nova.
O Menino mais novo
A imagem altiva do pai foi que lhe fez surgir a idéia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinha Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia _ . No dia seguinte, acordou disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.
Quando as cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura _ . Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados.
O Menino mais velho
Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinha Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil.
Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem _ . Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita ? A culpa era de Sinha Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho.
Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca _ . Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio _ .
Inverno
Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira. Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai, aborrecido pela interrupção de sua narrativa.
A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinha Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.
Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas _ . A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinha Vitória até pudesse ter a cama tão desejada.
Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo _ . Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.
Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora _ .
Festa
A família foi à festa de Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo _ .
Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinha Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais ainda. O pai espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom. Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última vez na cidade.
A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinha Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da família e foi beber pinga _ . Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário _ . Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso _ . Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.
Sinha Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira .
Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão. Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas _ ?
Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.
Baleia
Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinha Vitória recolheu os meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena.
Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinha Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.
Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente.
Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinha Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha _ . Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.
Contas
Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se.
Naquele dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinha Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinha Vitória era quem errara.
Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos _ .
Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô.
As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinha Vitória é que entendia seus pensamentos.
Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. o céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.
O Soldado Amarelo
Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o humilhara um ano atrás _ . O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo.
Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior.
Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.
O Mundo Coberto de Penas
A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinha Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga.
Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação _ . Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os.
Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito _ . Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.
Fuga
O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte.
Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade.
A vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano _ . Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinha Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar _ . Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação.
Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos _ ?
Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos _ ?
Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinha Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu.
Sinha Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinha Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.
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