1. NARRADOR
Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector. Oito dos treze contos [Devaneio e embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, Mistério em São Cristóvão e O búfalo] tratam da condição feminina no contexto familiar.
Nos quatro contos restantes [Uma galinha, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna e O crime do professor de matemática], a escrita continua presa ao universo familiar, privilegiando outros membros da família.
Todos esses contos são narrados em terceira pessoa, exceto O jantar que é narrado em primeira pessoa.
Nos doze contos em terceira pessoa, o foco narrativo caracteriza-se pela onisciência do narrador, que desvenda a interioridade dos personagens através de um movimento ora de cumplicidade, ora de distanciamento em relação a eles.
A cumplicidade, ou adesão, ocorre por intermédio do discurso indireto livre, da apresentação do fluxo de consciência dos personagens femininos, como veremos no exemplo abaixo.
Ai, palavras, palavras, objetos de quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e marcantes, que quem souber ler lerá. Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia de fazer. Ai, é uma tal coisa que se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertia tanto esta noite! E dizer que fora tão boa! Gritou-lhe seu o restaurante, ela sentada fina à mesa.
Mesa! Gritou-lhe o mundo. Mas ela nem se quer a responder-lhe, a alçar os ombros como um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea. [Devaneio e embriaguez de uma rapariga].
Observe que o narrador contrapõe a terceira [...dizer que se divertira tanto esta noite] à primeira pessoa [Ai, é uma coisa que se me dá que nem bem sei dizer], aproximando-se da personagem sem explicar-lhe os sentimentos, mas expondo-os tal como surgem, confusos, repetitivos, calados...
Este procedimento distingue os textos de Clarice dos romances de análise introspectiva, já que nos de Clarice o olhar de míope se cola aos personagens, desvenda-os com a minúcia, com o apego ao detalhe sensível, que segundo Gilda de Mello e Souza caracterizam o universo feminino, um universo de lembranças ou de espera, como mostra o exemplo transcrito, revelado com luminosa nitidez de contornos.
O feminino é assim femininamente representado, Por empatia e não por esforço racionalizado, embora, nos momentos de distanciamento, o narrador traduza o silêncio deste universo, e também as suas atribuições socialmente definidas.
Ai, que cousa que me dá! penso desesperada. Teria comido demais? ai, que cousa que me dá, minha santa mãe!
Era a tristeza.
Acordo com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito! dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste! censurou-se curiosa e satisfeita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol. [Devaneio e embriagues de uma rapariga]
No segundo parágrafo, o narrador, com a frase: Era a tristeza, verbaliza a indizível sensação da personagem expressa no primeiro parágrafo. No terceiro parágrafo informa a personagem das batatas por descascar, das crianças por cuidar, da roupa por lavar e das peúgas [meias] por cerzir.
As compras, o peixe, o dia atrasado, quer dizer, as obrigações domésticas que precisam ser cumpridas, constituem os elementos que reprimem a embriaguez, fazendo com que a personagem retorne a rotina... Assim, mesmo indo além da percepção confusa da personagem, mesmo traduzindo-a, o narrador onisciente não se afasta do imaginário da personagem mais que suficiente para denunciar a estreiteza de seu universo doméstico, denunciar uma prisão incompatível com a auto descoberta, com o processo de reconhecimento da individualidade, que ocorre ao longo dos enredos em forma de expressão de sentimentos primários, em forma de manifestação de um interesse apaixonado pela existência que momentaneamente transgride as limitações do papel social da mulher, sem transforma-lo, entretanto. É o que veremos, estudando os enredos desta obra.
2. ENREDOS
Vamos organizar o nosso trabalho, aproximando os contos pelo modo como abordam a temática dos laços de família, passando em seguida à apresentação sumária dos enredos, comentando as afinidades entre eles.
Devaneio e embriagues de uma rapariga
Uma mulher portuguesa, com a ausência circunstancial dos filhos, passa a devanear e a sonhar - Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar.
Neste clima chega o marido, a quem não dá importância quando este suspeita de que ela esteja doente. e continua o devaneio, lembrando-se de um jantar a que fora com o marido e o patrão dele. Neste janta, a duplicidade de sua vida com a esposa e com a mulher é revelada no êxtase com que se percebe cortejada pelo patrão do marido, na inveja que lhe provoca uma moça loira de peitos chatos, cintura fina e chapéu - uma mulher que lhe parecia ainda não ter assumido o papel doméstico.
Com a proximidade do retorno dos filhos, a mulher portuguesa [neste conto o narrador adere à personagem inclusive utilizando o Português de Portugal] volta ao devaneio e, para compensa-lo, resolve fazer uma grande faxina na casa.
3. TEMPO / ESPAÇO
Em termos de tempo e espaço, repete-se o comentário que fizemos sobre o enredo e os personagens. A divisão entre a interioridade e exterioridade, entre a infinitude do universo subjetivo e a limitação do universo exterior, constitui o contraponto em que trabalha Clarice, privilegiando o espaço externo que surge repentinamente, a qualquer pretexto, para que o personagem mergulhe no verdadeiro espaço destacado na obra: o si mesmo, incompreendido e subterrâneo.
Outra divisão que nos interessa para compreendermos a obra é aquela que se dá entre o tempo cronológico e o tempo psicológico. Cronologicamente, a mesmice da rotina impera nos contos.
Entretanto, o fragmento de tempo em que esta rotina é suspensa para que aconteça a explosão dos sentimentos, das sensações e das emoções dos personagens transforma-se num infinito de duração não mensurável em quantidade de tempo, que é mínima, mas em intensidade, como os domingos, as manhãs suspensos no ar...Ou como a primavera no conto O Búfalo, representando a dificuldade sentida pela mulher de odiar o homem que a rejeitara. Mas era primavera, a frase que inicia o conto, começa com uma conjunção adversativa [mas] cujo sentido só compreendemos depois de ler o texto: a primavera sugerindo o amor e a mulher suplicando e precisando do ódio.
4. LINGUAGEM
O mundo de Clarice é vivo e sensual. Erotizado, ele pulsa de corpo inteiro. Mundo carregado de cheiros, frutos podre e adocicados, carne crua e sangrenta, cheiro de cal, de maresia, de guardados, de estrebaria, de vacas, de leite e sangue. Carregado de formas gelatinosas e macilentas, de lama, de pus. De musicalidade que ecoa e vibra suas dissonância ao som agudo da flauta e do violino plangente. De telas e mais telas que pretendem alcançar o branco sobre o branco.
A convocação de todos esses elementos e outros mais são recursos tidos como necessários para captar a vida, a existência. Não a existência abstrata, exemplar, mas aquela que se entranha na banalidade do cotidiano. E isso Clarice consegue captar, de modo magistral, nos contos...
Quem nos conta todas essas histórias é Clarice Lispector que se conta através delas...
O fracasso é também o estigma que a escritora carrega. Entre a realidade, sua matéria-prima, e a linguagem - o modo como vai buscá-la e não se encontra - o seu esforço humano e apaixonado é buscar e voltar com as mãos vazias. Com o indizível. 'O indizível só me poderá ser dado com o fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela conseguiu.'
Enquanto nomeia e designa, a palavra faz surgir, à sua sombra, a multiplicidade do que não tem nome. Ela trai no que alcança dizer e é fiel quando silencia. Para contar não os fatos mas seus ecos e 'sussurros' não os personagens, mas suas vibrações e intimidades, não um caminho mas instantes privilegiados e fugidos, é preciso lapidar as estrelinhas, golpear a linha e aumentar o cerco do silêncio que rodeia a palavra.
Dilacerada, a linguagem mapeia o dilaceramento dos personagens, sua dispersão.
Dispersa, mutilada, a linguagem espelha o vazio do sujeito à procura da própria imagem de totalidade perdida no mundo em que vive.
Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o texto de Clarice.
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